sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Contos de viagem

Era pra ser uma viagem qualquer não fosse pela insistência daquele cara em puxar conversa. Não sei porque tanta vontade de falar comigo mesmo vendo que eu não estava nem um pouco interessado no papo. O relógio já marcava meio-dia, aquele ônibus estrada afora parecia que não chegaria nunca e o estômago implorava por alguma comida urgentemente.
O restaurante era precário mas estávamos sem opção. Luzes queimadas, piso quebrado, uma garçonete sem a menor vontade de servir e aquela maldita voz do meu colega de viagem que resolveu que eramos grandes amigos e estava até então tentando me convencer disso. Como se eu tivesse lá grande curiosidade em saber quem foi o campeão do último torneio de counter strike.

As moscas na mesa tiravam no par ou ímpar pra ver quem ia no prato mais bonito, até porque a quantidade de moscas era infinitamente maior que a de comida. Eu estava sentado a mesa com uma garrafa de refrigerante e um salgadinho, que foram as coisas mais decentes que consegui encontrar naquela espelunca e o meu novo melhor amigo, mesmo com a boca cheia de presunto, não parava de tagarelar sobre a vida das lagartas de Madagascar. Eu já estava desejando que ele morresse entalado com aquele sanduíche.

Parece que Deus, ou não, enfim, alguém ouviu minhas preces porque de repente a criatura começou a mudar de cor e a respiração cada vez mais ofegante. Fiquei apavorado, tudo esparramado sobre a mesa e aquele homem partindo dessa para melhor. E agora? Agora que eu mais precisava ouvir a voz dele não saia uma unica palavra daquela boca desgraçada. A garçonete viu o estado do infeliz e mandou encomendar as velas do caixão. Tudo pronto para o velório quando percebi que ele estava engasgado. Mas pudera falando mais que a lingua tinha mais era que morrer pela boca mesmo.

Tentei levanta-lo da cadeira com algum sacrifício, agarrei-o por trás e comecei a pressionar meus pulsos contra o seu diafragma, o homem enorme, a cena era mais ou menos como a de um macaco pai levando seu filhinho nas costas. Enquanto eu apertava abaixo do seu torax a garçonete veio a suas costas e lhe deu duas bofetadas vigorosas, como se estivesse batendo no namorado canalha. As batidas associadas ao aperto foram suficientes para que um grande pedaço de presunto e queijo, já embebido em sangue, saltasse da sua boca. O cara caiu exausto na cadeira e eu me sentia como se tivesse carregado toneladas por quilômetros a fio. A moça do bar lhe trouxe um copo d'agua enquanto todos olhavam atônitos a cena, num misto de espanto e alivio.

A viagem continuou, dessa vez mais sossegada, mas não sei porque meu grande amigo não quis mais conversar. Talvez ficou muito cansado depois do último ocorrido e agora dorme como uma criança depois de um dia agitado. Bom, ver a morte de perto deve ter feito ele pensar que se tem dois ouvidos e uma boca é pra ouvir mais e falar menos.

Thiago Carvalho - 05/11/2010

5 comentários:

  1. Olá! Vim retribuir a visita e me surpreendi com os contos, são muito bem escritos! Já pensou em escrever um livro? Acho que muitas editoras poderiam se interessar.
    Volte sempre, é muito bem-vindo!
    Um abraço,
    Adri

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  2. Muito obrigado!

    Já pensei sim, modéstia a parte, mas vamos com calma por enquanto.
    Fico grato pelo convite. Também está convidada a voltar sempre!

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  3. Thiago,

    obrigada pelo carinho e por retornar ao blog Desnuda. Foi mesmo uma boa, afetuosa e respeitosa acolhida da sua parte. Grata, de coração.

    Sabe, fiquei pensando sobre o texto... Acho sim que temos que aprender a ouvir mais e falar menos ( não sermos tão egóicos). Mas o que senti no texto foi uma euforia do rapaz por estar feliz, viajando e gostar de fazer amizades e é muito bom o contato com uma pessoa que está bem e animada, mesmo com as circunstâncias adversas ( como o restaurante, mosquitos, enfim..) ao contrário de você ( não sei se é real o fato, se é mesmo você, Thiago, ou o apenas o seu nome usado no conto) que não estava bem humorado e todas as observações e o falatório exagerado só fizeram aumentar o seu desconforto até a irritação. Há também lições ( mais do que uma) neste conto para o Thiago...

    Carinhoso beijo.

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  4. Desnuda,

    Adorei seu ponto de vista! Lógico, é sempre bom ter pessoas euforicas, alegres e divertidas por perto, talvez eu tenha forçado no exemplo e me expressei mal, desculpa!
    Sim, Thiago sou eu mesmo. É que eu fiz todo o conto baseado na 1º pessoa - narrador, no que ele estava sentindo e, estás certa, ignorei a alegria do rapaz falante. Vivendo e aprendendo, como disse, várias lições. Obrigado pela crítica!

    Thiago

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  5. Obrigada pela compreensão do meu ponto de vista, Thiago.

    Beijos e linda noite, amigo.

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