quarta-feira, 15 de junho de 2011

Morte e Vida

Suzana olha a foto do filho. Como de costume, nas noites em que não tem sono, ela senta no sofá da sala e chora, abraçada a uma das únicas lembranças que sobraram do seu doce pequeno, tudo isso regado a uma xicara de chá.

Os acontecimentos daquela noite lhe vem a mente de forma clara, em lembranças, em sonhos, como se fossem hoje. A porta de casa, a criança ferida, os gritos que ecoavam por toda a rua sem ter nenhuma resposta. Mesmo sem sentir a respiração do menino, mesmo sem sentir seu coração bater, mesmo se sentindo impotente, ela o carrega no colo em um choro inconsolável. Alguns vizinhos vão ao seu amparo mas já é tarde.

Muito tarde. Ela acorda assustada no sofá com o sol alto batendo no seu rosto. O retrato apertado contra o peito deixa marcas no seu corpo, mas nada comparado as marcas que há no coração. Na mesa de centro pousa um papel rabiscado. É um recado do marido. Não queria acordá-la e deixou ali escrito que chegaria mais tarde, "como naquela noite" pensou ela. "Não, esqueça isso. Não foi culpa dele." 

O sentimento de culpa lhe aperta o peito. Raiva e angustia se misturam ao desejo de nunca perder os entes queridos. Mas quando é que perdemos aqueles que amamos? A presença fisica é extremamente necessária para que possamos ser felizes por completo? Perder e ganhar faz parte do dia-a-dia. Todos são importantes, todavia, não podem e nem devem ser indispensáveis, tendo em vista que a morte é algo inevitável nas condições humanas. O exterior é essencial mas o que realmente importa está dentro de nós.

 Os corredores daquele orfanato fugia um pouco da precariedade em que se encontra as instiuições públicas atualmente. Apesar da infraestrutura decadente, seus funcionários se uniam em um esforço raramente visto, tentando proporcionar as crianças que ali viviam um ambiente mais aprazível. Suzana relutou um pouco quando Lúcia, uma das monitoras, lhe convidou para fazer parte do voluntariado. Seu psiquiatra, com quem já fazia terapia há quase um ano, gostou da idéia e imaginou que lhe faria bem. Por fim aceitou o convite há alguns dias e disponibilizava dez horas por semana para executar tarefas e serviços dos quais o orfanato necessitava. Geralmente, ela se atinha a algo em que pudesse trabalhar sozinha, perdida em seus pensamentos. Suzana estava em direção ao orfanato e nem imaginava que naquele dia ela teria que participar de uma tarefa diferente.

- Boa tarde Suzana! Como vai?
- Boa tarde Lúcia, estou bem e você?
- Me sinto ótima! Pronta para o serviço? Preciso que faça algo diferente hoje. Pode ser?
- Algo diferente? Como assim?
- Sabe a Vera? Que conta história para as crianças? Não veio hoje e eu preciso que você fique no lugar dela.
- Lúcia... Eu não sei se eu posso sabe? Por que não fica você mesma no lugar dela? Não seria melhor?
- Claro que você pode! Mas só estou te pedindo um favor. Você não precisa aceitar. Mas gostaria muito que fizesse isso.

"Meu Deus", pensa Suzana. "Ver todas aquelas crianças... Eu não vou suportar." Lúcia pousa a mão suavemente em seu ombro:

- Eles precisam de você tanto quanto ele precisava.

Ela fita seriamente a face serena de Lúcia, enquanto um filme passa na sua mente. Tudo o que aconteceu, dor, sofrimento, meses de terapia. "O mundo acabou? Não, talvez uma parte de mim que jamais ressucitará. Entretanto, há algo vivo. Ainda existe vida dentro de mim, ainda existem pessoas contando com essa vida. Não posso abandoná-los. O brilho dos seus olhos continuaram dentro de mim, mas é hora de me despedir. Eu te amo muito meu doce pequeno". 

Suzana sorri e abraça Lúcia longamente. Após, se dirige a sala onde as crianças esperam ansiosas o começo de uma nova história.

Thiago Carvalho - 15/06/2011